O Mocotó

08/04/2020

Um conto de Byra Di Oliveira, dedicado a memória de Gustavo Bebianno, vítima de um boteco chinfrim chamado Brazil.

Boteco chinfrim aquele.

Mesas e cadeiras enferrujadas misturadas a um monte de engradados de cerveja encostados num canto.

No balcão, uma pequena vitrine com três coxinhas de galinha de anteontem. Dava para sentir quão frias e geladas estavam, já que o ambiente de quente só tinha a cachaça.

Nada ali lembrava a elegância e o charme do botequim da praia de onde eu havia saído, e enchido a cara fugindo do tédio da vida de executivo, com a turma do futebol society.

Mas por um acidente do destino estava ali.

O pneu do carro havia estourado, e a barriga arrebentando da farta comida boêmia, regada a Ballantines no Astor.

Tinha que botar tudo para fora, junto com a paura da Bolsa, as besteiras do Guedes e as maluquices do capitão, motivo das discussões naquela tarde.

Antes de entrar já tinha chamado o hugo junto ao pé da árvore na calçada.

A cabeça confusa não conseguia distinguir a diferença entre aquele lugar e qualquer outro boteco da moda de Ipanema.

Estava à procura de um sonrisal que fosse, e um copo d'água que fizesse o pozinho borbulhar.

Logo que entrei vi na prateleira aquilo que buscava. A estante mais parecia um balcão de farmácia: engov, eno, leite de magnésia, aspirina. Até uma réstia de camisinhas desbotadas tinha.

O olhar delirante passou batido em direção ao banheiro. Tinha que dar uma cagada e colocar para fora aquilo que me confundia o estômago.

A porta sem tranca mostrava o vaso sanitário todo respingado de merda, e as paredes repletas de inscrições, todas banais, de baixo calão.

Nessas horas a gente não consegue perceber a higiene. É a necessidade, o sufoco, o aperto da barriga, ou da bexiga querendo urinar.

O primeiro movimento saiu pela boca. Um vômito meio esverdeado de um fígado cambaleante. Depois veio a bolo de mignon digerido com vinho, uma merda fedida, mole e nojenta.

A entrada, no que passei pelo balcão até chegar ali pedi ao dono do estabelecimento alguma coisa que parecesse papel.

Dos tempos de moleque pobre suburbano lembrei da técnica de amassar a folha de jornal antes de usar. Passei no cú a tinta da notícia da sacanagem dos caras com o Bebianno, meu parceiro de judô. Não sei por que, mas o nojo que sentia pelo noticiário era maior do que aquele que havia naquele quartinho.

Com rabo velho limpo fui logo procurando pela descarga. Não queria deixar vestígio da minha passagem. O dono do boteco respondeu num grito que mais tarde jogaria uma lata d'água para limpar a fedentina.

Estava me sentindo um sórdido bebum, caído na sarjeta, envolto em cheiros e perfumes os mais desagradáveis, percebendo naquele momento a miséria de qualquer cachaceiro de rua.

Mas me senti satisfeito ao completar aquilo que fora fazer ali.

Depois do copo de água borbulhante com aquele santo remédio fui aos poucos voltando a normalidade, louco de vontade de beber uma gelada. Pedi uma que, não vou negar, desceu redonda como o slogan que a propaganda lhe deu.

Com a cabeça no lugar tive a idéia de retribuir o favor, como se não fosse uma obrigação da lei manter um bar com um banheiro decente.

Do sujeito atrás do balcão ouvi a resposta que lhe pagasse apenas o que devia. Na certa não era o primeiro a derramar o porre pelo chão, ressaqueado.

Mas como não sou daqueles que se submete a trama, insisti, perguntando o que havia para comer, além das defuntas coxinhas.

Veio a surpresa. O cara me trouxe um prato de mocotó, repleto do que sobrara do almoço, que derrubei na hora.

Divina comida! As colheradas quentes aquecidas pelas gotas do molho ardido de pimenta foram descendo, e se acomodando como uma luva em cada tripa da minha barriga.

Bem, para não ficar encompridando a história digo que paguei a conta antes de repetir, bebendo o último copo de cerveja, a terceira garrafa que eu matava, intimo do lugar.

Ainda no Uber senti de novo a sensação, a revolução, desta vez causada pelo mocotó barato de um boteco vulgar.

Mas ai, Inês já estava morta, e eu envolvido no conforto da minha casa, pijama trocado e a certeza de que o guincho da seguradora tinha deixado o carro na garagem.

Byra Di Oliveira

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Feliz Sem Idade - Neoguru Birya Sancho
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