O MACARRÃO DE ANO NOVO

31/12/2017

(UM CONTO DE BIRA DI OLIVEIRA)

Todo fim de ano era assim, ela triste, se sentindo sozinha, assistindo a queima de fogos pela televisão, uma velha CCE de tubo, tamanho 20 polegadas. 

E aquele ano certamente, também não seria diferente, com o som dos estampidos sendo abafado pelo ronco do marido dormitando ao lado, esparramado no sofá rasgado, coberto por uma manta fedida pela baba de Pretinha, uma cadela vira latas para quem ele dava mais atenção que a ela.

Sua rotina de dona de casa a fizera esquecer de si, dos seus desejos, do seu passado de mulher bonita e feliz, tanto que nem se lembrava mais de quando iam para Jurujuba, assistir ao espetáculo de luzes e cores visto através da grande poça d'água que a separava da praia de Copacabana, lotada com seu famoso réveillon, comemoração que um dia sonhava frequentar.

No começo do casamento, o dia 31 de dezembro era uma festa, as crianças vestidas com a roupa branca da primeira comunhão, e a cesta de vime que um dia fora o berço do menor, carregada pelo braço, cheia de rabanadas, salgadinhos e pedaços do peru que sobrara do Natal, acompanhado de uma farofa amarela repleta de passas, nozes e castanhas, também sobra, que parecia com as oferendas a Iemanjá deixadas na areia da praia.

Seus filhos, um casal bem crescidinho para as crianças da sua idade, morriam de medo daquela gente estranha ali ao lado, protegidas por um cercadinho de flores, fumando charuto, e dançando ao som de atabaques. Cochichavam os dois, imaginando que seriam levadas para o fundo do oceano dentro do barco da divindade, de tão pequeno que era.

Era um tempo de fartura, ele trabalhando como mecânico dos aviões da Panair, e ela empregada doméstica na casa de um cônsul de uma daquelas republiquetas bananeiras, aviões que marcaram suas vidas, posto que ao terminarem os estudos os filhos se mandaram para construir suas histórias no exterior, o menino músico de rua na Califórnia, e a garota trabalhando num bordel de luxo na França.

Ficaram os dois sozinhos, e por incrível que pareça o fim de ano era o único tempo de convívio e reunião da família, com os filhos gastando suas economias em longos interurbanos, carregados da nostalgia dos expatriados, e ela e o marido sentados no sofá estendendo a conversa, convívio regado a vinho de garrafão, e animado pelas velhas canções de Roberto Carlos, aquelas que dançavam nos bailes do Social, tempo em que se conheceram e começaram a namorar.

Naquele ano ele ainda não tinha chegado das bebedeiras da rua, e ela maltratada por uma lombar, mal conseguia reunir forças para preparar o macarrão que comeriam quando ele chegasse.

Na sua solidão de rainha do lar, se pegou na cozinha procurando o aparelho de retirar caroço da azeitona, comprado na feira, quando encontrou no fundo da gaveta do armário, misturado as tralhas, o que sobrou do bilhete de embarque de uma passagem de avião que o marido ganhara de prêmio, e que usaram numa breve viagem a Mar Del Plata, dia em que ele gastou todo o dinheiro num cassino, enquanto ela morta de frio aguardava pela volta ao Brasil.

A descoberta despertou sonhos e desejos guardados a muito tempo, e que volta e meia tamborilavam em sua cabeça. Aposentada, tinha direito ao um RioCard Senior que a levava ao culto da Universal, e a casa de uma prima em Campo Grande, uma verdadeira passagem de avião que a conduzia para longe daquela vida de merda que vivia.

Na televisão ligada ouviu o telejornal anunciar como seria a queima de fogos daquele ano, e que o Rei Roberto era a grande atração do show da virada.

Tinha um vestido amarelo e branco, meio camisola, que vestiu com a sandália vermelha de rendinha, feita em uma das aulas de artesanato na Igreja.

Quando chegou em casa no dia seguinte, depois da longa caminhada até as areias da praia, posto 3 em frente ao Copacabana Palace, encontrou o marido imóvel, estirado no sofá, com a cadela Pretinha lambendo-lhe o canto da boca, sujo do molho do macarrão que tinha comido e não terminara, espalhado por cima da vasta barriga, que a camiseta rasgada não conseguia cobrir.

Tinha morrido, e aquilo que parecia tomate era sangue, resultado da bala perdida de alguma comemoração na favela, que transpassara-lhe a carótida.

Mesmo assim, sem desespero, recolheu os restos de comida do chão, para manter a casa limpa antes da chegada da ajuda da vizinhança. 

Fazia horas que um novo ano tinha começado, determinando que sua vida não seria mais a mesma. Quem sabe em alguma canção do Roberto encontra-se a solução para a mediocridade do seu destino vulgar. 

Naquele ano, nas areias da Praia de Copacabana, tinha sonhado e vivido uma grande paixão pela primeira vez.

Bira De Oliveira

Feliz Sem Idade - Neoguru Birya Sancho
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